Durante boa parte do século XX, uma das principais lutas cidadãs na América Latina foi aquela por alcançar a democracia eleitoral. Dada a preminência na região de regimes ditatoriais, fossem militaristas ou civis, a ideia de eleições em que fosse o eleitorado quem definisse os governos era pouco menos que uma utopia. Por um lado, estavam as farsas que com práticas fraudulentas prolongavam o sistema, mas também os partidos únicos. Os dominantes que fomentavam chamadas “ditaduras perfeitas” e também os que simplesmente não realizavam eleições. Aquela realidade horrível foi-se superando a partir da década de 80 quando iniciam as transições para governos eleitos de maneira legítima, o que alcançou muito entusiasmo.
Somente entre 1979 e 1990 se concretizaram uma transferência Democrática os seguintes países: Equador com Jaime Roldós Aguilera; Peru com Fernando Belaunde Terry; Bolívia com Hernán Siles Suazo; Honduras com Roberto Suazo Córdova; Argentina com Raúl Alfonsín; El Salvador com José Napoleão Duarte; Guatemala com Vinicio Cerezo; Uruguai com Julio María Sanguinetti; Brasil com José Sarney; Chile com Patricio Aylwin; Panamá com Guillermo Endara; Nicarágua com Violeta Barrios de Chamorro. Entrados os anos 90, com as eleições no Paraguai E Haiti, mais os avanços que levaram a uma transição no México, pela primeira vez a quase totalidade do continente tinha governos surgidos da vontade popular. 19 países, com a única exceção de Cuba, decidiram enviar a mensagem ao mundo de que haviam assumido os valores republicanos e institucionais.
No entanto, ao contrário dos contos de fadas, aqui não podemos dizer “e eles viveram felizes para sempre”. Pelo contrário, males como o populismo e a corrupção feriram profundamente o ideal democrático aos olhos de muitos que, com razão, se sentiram decepcionados pelo resultado do velho sonho. Daí o entusiasmo foi se transformando em cinismo, confiança em rejeição e unidade em polarização perigosa. Já não havia um olhar otimista para o futuro, mas uma saudade pessimista ao passado autoritário, o que abriu as portas à influência perversa do castrismo, desesperado então por novas alianças. Paradoxalmente, o primeiro a cair foi a Venezuela, país que teve a maior tradição democrática e que tanto ajudou as lutas libertárias dos vizinhos.
A instalação do chavismo em Miraflores com sua agenda destrucionista coordenada por seus chefes em Havana significou o início de um terrível retrocesso. Uma vez disparados os preços do petróleo, principal matéria-prima venezuelana, a ausência total de escrúpulos deu lugar à exportação do modelo funesto. Da mesma forma que Hugo Chávez chegou ao poder, legitimado por uma maioria eleitoral, vimos um Evo Morales fazer o mesmo na Bolívia, um Rafael Correa no Equador e um retornante Daniel Ortega na Nicarágua. Embora todos estes tenham concordado com o governo por vias constitucionais, seu comportamento no poder foi violatório dos princípios democráticos, em variedade de intensidades. Com o nome de Socialismo do século XXI, eles replicaram as práticas mais condenáveis do século XX e XIX.
Tudo isso nos lembra que, embora não possa haver democracia sem eleições, isso é muito mais do que apenas poder ir às urnas. Quando não se fortalece uma cultura política republicana, deixa-se uma brecha a que setores extremistas possam aproveitar-se dos mecanismos legais para, a partir daí, impor sua agenda de terror. Da mesma forma, pensar que se está vacinado contra este mal deixa as sociedades presas numa nociva autocomplacência da qual se aproveitam estes personagens. Talvez o caso da Nicarágua seja dos que mais eloquentemente demonstra esta tese, uma vez que a desconcertante falta de visão dos setores liberais foi do que se valeu o orteguismo para ser triunfante após 16 longos anos de oposição.
Nas eleições de 2006, o ditador nicaraguense alcançou 38% dos votos, enquanto seus rivais divididos em três candidaturas somaram 62%. Instigando esta divisão astutamente, ele conseguiu uma reforma constitucional que diminuísse o limiar necessário de primeiro retorno ao ridículo 35%, ou seja, acomodando a eleição ao seu teto histórico. Isto pelo desespero do ex-presidente Arnaldo alemão, que precisava da Frente Sandinista para conseguir impunidade em sua submissão por corrupção. O resto já o conhecemos: decisão judicial habilitante para reeleição, despojo da pessoa jurídica à oposição, enriquecimento ilícito, nepotismo sem complexos e centenas de mortos majoritariamente jovens que lutaram por seus direitos. Muitos não teriam pensado em 1990 quando o orteguismo foi derrotado pelas forças democráticas que a miopia histórica de seus rivais o levaria a retornar muito pior no futuro.
Os populistas criaram uma retórica que os justifica. O voto popular não é mais que um acessório, um trâmite que valida o que por direito natural lhes pertence. A propaganda apresenta-os como a única garantia de governança possível, atribuindo-lhe condições não encontradas em nenhum outro.
Esse culto excessivo não só nos traz de volta a um passado que acreditamos erroneamente ter sido superado, mas prova que nunca o deixamos.